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18.8.09

A Música dos Ainur¹

Li certa vez uma lenda antiga, que narrava a forma como o mundo foi criado. Fiquei encantado com a narração, visto haver nela beleza e, por conseqüência disto, profunda verdade. A história conta a existência de um grande senhor soberano de nome Eru, o Único, conhecido pelos elfos como Ilúvatar, que quer dizer Pai de Tudo. Eru possuía os Ainur como seus amados servos, seres magníficos que possuíam o dom da música como suas próprias vidas. Antes que o mundo e o que era conhecido como Terra Média fossem criados houve um projeto que surgiu do mais belo canto e da mais magnífica orquestra dos Ainur, inspirados por um tema sugerido por Eru. A música era estupenda e parecia realmente dar vida a lugares onde apenas o vazio reinava. Dentre os Ainur, porém, existia um que desejou o poder de Eru e a posse da Chama Imperecível, o único elemento capaz de criar vida a partir do nada. Este Ainur tinha o nome de Melkor, e por causa de sua maldade acabou se tornando, mais tarde, o Senhor do Escuro. Por não ter acesso à Chama Imperecível, que vive dentro de Eru, durante a orquestra resolveu por acrescentar as notas dissonantes à melodia de toda a música. Isso significaria a distorção da criação da Terra após o término do projeto musical. No entanto, para espanto do próprio Melkor, Eru apossou das notas dissonantes, agregando-as à música dos outros Ainur, fazendo-as se encaixar perfeitamente, não atrapalhando o resultado final que se fez belo, refletindo o poder e a sabedoria do próprio Eru.

A beleza da lenda, e o que ilumina meu coração de esperança, além da poesia que nela se encontra, é o fato de as notas mais dissonantes de Melkor, por mais sem sentido que podiam ser, fazerem parte da melodia final, não tornando a música desagradável. Pelo contrário. A sabedoria e a criatividade de Eru Iluvatar não permitiram que a música perdesse a verdade e o sentido, elementos que orientavam a criação dos Ainur.

Paro um instante e penso no que acontece além das lendas. Vejo que muitas vezes lendas como esta tem um pouco de razão. Pensemos em catástrofes naturais enormes como tufões, tsunamis, ou até mesmo as causadas pelo próprio homem como as guerras, que assolam multidões. Estas, que sofrem com os resultados das catástrofes, não imaginam notas mais dissonantes do que a dor que passam com tamanho acontecimento. No entanto, algo me diz que existe uma música com um significado maior e cheio de verdade e beleza, que toma posse dessas notas e as conduz para algo pleno. Não é incomum ver em momentos como estes que citei outras multidões se levantarem em busca de ajuda daqueles que sofrem com as catástrofes. A poesia da solidariedade ainda existe (escondida) nos homens.

Poderia trazer mais para o pessoal (e essa é realmente a minha intenção) ao pensar em acontecimentos de menor escala, mas que causam sofrimentos na mesma proporção dos de um furacão. A morte de um ente querido, a traição de um amigo ou do amor de sua vida, a traição de si para consigo mesmo e outras tantas composições musicais que soam estranhas para nós, nos ferem profundamente. Fico triste e bastante melancólico quando deparo com as minhas próprias maldades e aquelas que me cercam. As vezes chego até perder a esperança de que esta realidade dissonante possa mudar… E realmente não muda. Apenas termina o tempo de sua execução e parte-se para o tempo das notas que nos trazem alento e isso graças a “Iluvatar”, que tem o controle da música final e conduz a orquestra como um todo para um encerramento esplendoroso. Essa é uma boa esperança!

Quero confiar na regência dAquele que conduz a história da humanidade e buscar nele inspiração para evitar soltar notas dissonantes. Mas caso venha a cantar alguma melodia desse tipo ou escutar essas notas na minha vida, não quero deixar de entregá-las na mão desse regente que consegue tirar beleza de algo que é desprovido dela. Quero ser levado pela música maior, pela beleza maior, pela Verdade maior.

¹Ou Ainulindalë é uma das histórias que se encontram no livro O Silmarillion, de J. R. R. Tolkien


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