Páginas

14.9.10

O Povo do Livro (parte I)

Conta uma história antiga sobre uma tribo conhecida como Watu wa kitabu, que em nossa língua quer dizer o “povo do livro”. É praticamente óbvia a razão de dar a um povo esse tipo de nome: provavelmente um grupo de pessoas, possuidora de algum tipo de literatura especial, que direciona a vida em comunidade de tal grupo, ou alguma coisa parecida. A questão que pode surgir diante de tal nome é: que tipo de livro seria esse?

Diz a lenda que esta tribo era especial para Kubwa Muumba, o grande criador. Kubwa, de todas as tribos que ele desenhou na poeira das estrelas, em meio à imensidão azul, watu wa kitabu foi a única na qual colocou os cinco elementos de sua essência, que descrevem o espírito de Muumba. O primeiro dos cinco foi a gota de seu damu, o sangue que dá a vida e imortalidade aos watu wa kitabu. O segundo elemento era a primeira gota de lágrima deKubwa, que ele deixou cair sobre seu desenho ao ver a singeleza do povo que estava criando. Foi dai que surgiu toda a emoção dos watu wa kitabu. As caixas hekima foi o terceiro, onde é guardada toda a sabedoria de Kubwa Muumba. Apesar de sua importância, as caixas eram pequenas. Até dentro do coração de uma criança era possível encontrar uma dessashekima. O quarto elemento, os ukanda wa nyota, eram as finas correntes de estrelas, que ficavam nos dois pulsos de Kubwa. Elas inspiravam no próprio Kubwa o desejo de unir todo o universo a si. Não é a toa que a busca por relacionamentos estreitos é o desejo mais forte dos watu wa kitabu. E por último, o canto ubunifu, a canção que trazia a criatividade e toda espécie de arte ao povo. É a música mais importante dentre todas as outras criadas peloswatu wa kitabu. Muitos livros, poesias, canções, danças e construções desta e de várias tribos só foram possíveis graças a melodia do ubunifu, que ecoa do coração do povo do livro.

Todos esses presentes, assim como a hekima, eram guardados como tesouros dentro do coração de cada pessoa da tribo. E por causa desses presentes, nunca se viu outro povo viver tão bem quanto os watu wa kitabu. Afinal, a benção do grande criador os acompanhava na própria essência da tribo.

A alegria de Kubwa Muumba foi tamanha ao ver a primeira dança de suas belas criaturas, que ele resolveu dançar junto delas em um determinado dia do tempo e do espaço. Ao som daubunifu, a música da criatividade, fez-se o dia mais feliz de toda a terra, onde o grande criador e seu povo se conheceram e se amaram.

Como sinal do pacto desse amor, nesse mesmo dia, Kubwa escreveu o livro mais belo de todas as literaturas dos watu wa kitabu, que não foram poucas. Usando a luz da Estrela-rei, escreveu toda a sua alegria em poesia, toda sua sabedoria em contos, prosa e ciência, todo seu desejo pela união dos watu wa kitabu em decretos que saiam da boca do próprio povo. E era possível ver as mais raras e belas borboletas saírem dos olhos de Kubwa, para selar suas palavras e criatividade.

Assim se tornou Kitabu ya vitabu, o Livro dos livros, a expressão escrita daquilo que os watu wa kitabu eram e deveriam ser (e seguir): o reflexo de Kubwa. Isto tudo explica a dependência que tal tribo tinha deste livro e daquele que o escreveu.

Seria perfeita esta história, se não houvesse acontecido o kilio ya kutisha, o dia do terrível grito. A lenda continua narrando o momento em que Hasira, o sentimento de raiva se tornou em Ovu, a maldade. Assim como os outros sentimentos vindos da lágrima de Kubwa, Hasiraera um sentimento bom, por ser este irmão gêmeo do desejo pela justiça. Os dois juntos moviam o coração dos watu wa kitabu a lutarem para que a presença e o reinado de Kubwa se estendessem por todas as tribos do universo. Claro que o que legitimava esta luta era o amor de Kubwa e seu desejo por reunir tudo a si. O problema foi que Binadamu, o homem mais habilitado dentre todos da tribo a mexer com a Hasira, quis experimentar usá-la sem a presença do desejo por justiça e sem a benção do amor deKubwa. Hasira, com todo o seu poder solitário, fez nascer em Binadamu um sentimento que não veio da lágrima de Kubwa, o orgulho, e este iludiu Binadamu, fazendo-o sentir-se forte o suficiente para viver longe dos domínios de Kubwa e de seu livro. “Afinal de contas”, pensou Binadamu, “não tenho eu a mesma sabedoria, emoção, conhecimento, união e criatividade presentes no Kitabu ya vitabu?”

Mal sabia ele da conseqüência terrível que esse ato de rebeldia traria para si e para seu povo. A dissolução da sua identidade em Kubwa estava desde então decretada.

___________________________________________________________________________

A língua aqui usada é a suaíle, língua oficial do Quênia, Tanzânia e Uganda, na África

Watu wa kitabu – povo do livro

Kubwa Muumba – o grande criador

Damu – sangue

Hekima – sabedoria

ukanda wa nyota – região das estrelas (ou cinturão das estrelas)

ubunifu – criatividade

Kitabu ya vitabu – Livro dos livros

kilio ya kutisha – o grito terrível

Hasira – raiva

Ovu – maldade

Binadamu – humanidade

Nenhum comentário: